Uma Família Inglesa
Neste post dava conta da incrível variedade de produtos importados pelas livrarias portuenses no século passado. Ao reler «Uma Família Inglesa» de Júlio Dinis, cuja narrativa se passa no ano de 1855, sou capaz de ter encontrado um dos clientes das «lojas de livros». Carlos devia passar uns tempos deliciosas a fazer compras Moré e na Livraria Franceza.
«A cena, de facto, escapa à mais esmiuçadora descrição.
Parecia que todos os objectos, ali contidos, haviam, durante a noite, entrado em dança fantástica, de tal sorte os surpreendera o dia, deslocados da sua natural situação.
As cadeiras, amontoadas em desordem no meio da sala, haviam usurpado as atribuições dos guarda-roupas; estes, abertos de par em par, patenteavam o interior desordenado e quase vazio, como após um saque de cidade conquistada.
Nas mesas, nos sofás, em voltaires, no chão, por toda a parte enfim, menos nos lugares competentes, via-se casacos, coletes, calças, mantas de diferentes cores e feitios. O pavimento achava-se literalmente alastrado de objectos de impossível enumeração; aqui, umas luvas, calçadas pela primeira vez na véspera e já postas de lado como inúteis; ali, alguns ramos de flores desfolhadas e murchas, cuja posse, procurada talvez com incansável insistência, trouxe depressa após si o abandono e o esquecimento; noutros pontos, charutos meio consumidos, os fragmentos de uma preciosa jarra de porcelana da Índia, um livro, que cometera o delito de não excitar a curiosidade, uma cadeira derrubada com o fardo que lhe pesou sobre o espaldar; cartas, colarinhos, retratos, lenços, chicotes. As esporas no lugar do relógio; este pousado na beira do mármore do fogão; sobre o leito um dominó de cetim; pendente à cabeceira, o jornal da véspera e um longo cachimbo com tubo de guta-percha; aos pés, o polvorinho de caça, o robe-de-chambre de damasco e o teliz da horsa favorita; no velador, um tinteiro de prata, transformado em cinzeiro de charutos; um chapéu pendurado na chave da porta; o candeeiro no chão, alguns livros e mapas geográficos quase debaixo da cama. Um abat-jour de cartão envernizado com figuras extravagentes, representando chins em posições todas elas chinesamente ridículas, servia de barrete ao busto de Shakespeare, cujo pescoço estava além disso diplomaticamente enfeitado com uma gravata de baile; defronte, Byron, coberto com chapéu de feltro de abas largas, o qual lhe pendia galhardamente sobre a orelha esquerda, parecia fitar com petulância o seu ilustre conterrâneo; no outro ângulo, era aquela figura séria e bondosa de sir Walter Scott, com não sei que ares de acanhado debaixo do barrete turco, que a guerra da Crimeia pusera então à moda; e finalmente um quarto busto ocultava, sob máscara de cetim preto, a expressão de candura e sofredora tristeza do cantor dos combates dos anjos e demónios, o sublime Milton.
Dir-se-ia que estes grandes personagens da literatura inglesa, obedecendo à voz do carnaval, haviam surgido da sepultura, para virem celebrar também entre si, com as suas cabeças pálidas, a mais estranha mascarada.
No meio de toda esta confusão, um enorme terra-nova, de ventas leoninas e corpulência de touro, languidamente recostado nas moles almofadas do sofá luxuoso, pousava as patas musculosas e peludas sobre um magnífico álbum de gravuras, com a mais absoluta irreverência pela preciosidade, que assim lhe servia de cabeceira e de estrado.
Imagine-se o resto.»
«A cena, de facto, escapa à mais esmiuçadora descrição.
Parecia que todos os objectos, ali contidos, haviam, durante a noite, entrado em dança fantástica, de tal sorte os surpreendera o dia, deslocados da sua natural situação.
As cadeiras, amontoadas em desordem no meio da sala, haviam usurpado as atribuições dos guarda-roupas; estes, abertos de par em par, patenteavam o interior desordenado e quase vazio, como após um saque de cidade conquistada.
Nas mesas, nos sofás, em voltaires, no chão, por toda a parte enfim, menos nos lugares competentes, via-se casacos, coletes, calças, mantas de diferentes cores e feitios. O pavimento achava-se literalmente alastrado de objectos de impossível enumeração; aqui, umas luvas, calçadas pela primeira vez na véspera e já postas de lado como inúteis; ali, alguns ramos de flores desfolhadas e murchas, cuja posse, procurada talvez com incansável insistência, trouxe depressa após si o abandono e o esquecimento; noutros pontos, charutos meio consumidos, os fragmentos de uma preciosa jarra de porcelana da Índia, um livro, que cometera o delito de não excitar a curiosidade, uma cadeira derrubada com o fardo que lhe pesou sobre o espaldar; cartas, colarinhos, retratos, lenços, chicotes. As esporas no lugar do relógio; este pousado na beira do mármore do fogão; sobre o leito um dominó de cetim; pendente à cabeceira, o jornal da véspera e um longo cachimbo com tubo de guta-percha; aos pés, o polvorinho de caça, o robe-de-chambre de damasco e o teliz da horsa favorita; no velador, um tinteiro de prata, transformado em cinzeiro de charutos; um chapéu pendurado na chave da porta; o candeeiro no chão, alguns livros e mapas geográficos quase debaixo da cama. Um abat-jour de cartão envernizado com figuras extravagentes, representando chins em posições todas elas chinesamente ridículas, servia de barrete ao busto de Shakespeare, cujo pescoço estava além disso diplomaticamente enfeitado com uma gravata de baile; defronte, Byron, coberto com chapéu de feltro de abas largas, o qual lhe pendia galhardamente sobre a orelha esquerda, parecia fitar com petulância o seu ilustre conterrâneo; no outro ângulo, era aquela figura séria e bondosa de sir Walter Scott, com não sei que ares de acanhado debaixo do barrete turco, que a guerra da Crimeia pusera então à moda; e finalmente um quarto busto ocultava, sob máscara de cetim preto, a expressão de candura e sofredora tristeza do cantor dos combates dos anjos e demónios, o sublime Milton.
Dir-se-ia que estes grandes personagens da literatura inglesa, obedecendo à voz do carnaval, haviam surgido da sepultura, para virem celebrar também entre si, com as suas cabeças pálidas, a mais estranha mascarada.
No meio de toda esta confusão, um enorme terra-nova, de ventas leoninas e corpulência de touro, languidamente recostado nas moles almofadas do sofá luxuoso, pousava as patas musculosas e peludas sobre um magnífico álbum de gravuras, com a mais absoluta irreverência pela preciosidade, que assim lhe servia de cabeceira e de estrado.
Imagine-se o resto.»
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