quinta-feira, junho 23, 2005

Reflexão 8 (Fernando de la Flor)

«Castiga-se o livro, sobretudo, o seu formato arcaico, a aparência que, imutável, acompanha ainda o que mudou, pois o novo domínio electrónico continua a evocar fortemente uma disposição vagamente rectangular. Trata-se, então, de um martírio; trata-se de dominar, no objecto, aquilo que tem de objecto, ignorando por completo o seu espírito, que é sem dúvida abominado. Nas desoladoras galerias da arte moderna, por vezes, adverte-se a forma do livro submetida a este castigo exemplar. Os castigos, nestes casos, são pesados, os rituais são sádicos e ominosos. Deixar o objecto obscuramente desquartizado é como se se tratasse de impedir que, falando, pudesse voltar a mentir.
O livro atado, o livro empastado, impossível de abrir (trata-se, no fim de contas, do “texto hermético” no seu sentido mais hermético); o livro emudecido em forma de tijolo, com o qual se foi construindo o edifício cultural do Ocidente, sobressai, nestes âmbitos da produção simbólica, pela sua condição totémica e, portanto, pela condição de ser objecto sobre o qual se abate a violência da nova ordem depuradora.
Estas manobras artísticas de signo desconstrutivo, realizadas sempre à custa de uma legitimidade futura – autêntico motor da existência dessa forma imóvel, e um tanto atemporal, que é a estrutura do livro –, comprometem a sua sobrevivência, bloqueando alegoricamente a sua própria viabilidade. Como se, de forma burlesca, as colagens e os esparadrapos, ou a vitrificação da matéria impressa por detrás dos cristais e nas caixas lacradas e transparentes com que as vanguardas o manufacturaram para o mercado, anunciassem uma imortalidade embalsamada e um enigma ao mesmo tempo indecifrável: o livro não mais será lido.»

Flor, Fernando R. de la, Biblioclasmo, Lisboa, Livros Cotovia, 2004, p96